Extras Episódio 03

Em novembro de 2021, Ivan Mizanzuk viajou para Altamira com o pesquisador Rubens Pena Júnior. Ele passou cerca de duas semanas no município, tentando conversar com familiares das vítimas. Uma das pessoas que o recebeu foi Irene Nascimento, irmã do menino Ailton Fonseca do Nascimento, que desapareceu em 5 de maio de 1991, aos 10 anos de idade. A sua ossada só foi encontrada 46 dias depois, em 20 de junho.
De acordo com Irene, o corpo foi reconhecido a partir dos pertences pessoais que o menino carregava. “Devido à roupa que ele usava e as coisas com as quais andava. A mesma roupinha que ele vestia quando saiu de casa foi encontrada no lugar da ossada. Uma baladeira, que ele gostava muito, também foi achada na época, além de um litro de Qboa cortado, usado para colocar pedra dentro”, conta em entrevista ao podcast. Baladeira é o nome dado para estilingue na região Norte do Brasil.
Após ser encontrada, a ossada foi enviada para a capital, Belém, para análise. O problema é que ela nunca mais voltou para a família. “Disseram que ela se misturou com os ossos de outras pessoas, de outras crianças, e ficou por lá. Nós não enterramos o meu irmão porque a polícia o levou para lá, não me lembro se foi a civil ou qual foi, e ele ficou por lá mesmo”, diz Irene.
Ela relata que os pais fizeram de tudo para tentar resolver a situação, mas de nada adiantou. Essa é mais uma ferida aberta na vida nos familiares, que sequer puderam dar adeus à criança. A mãe de Irene e Ailton faleceu há 16 anos, sem nunca saber do paradeiro dos ossos do menino. “Ela ficou muito triste, vivia abalada e sempre reclamava: ‘meu filho morreu e eu não pude nem enterrar a ossada dele’. Mas ela não podia fazer nada, né? Eles falaram que tinham misturado e ficou por isso mesmo”, completa a irmã da vítima.
Durante a entrevista, Irene se lembrou ainda de um novo e misterioso personagem: um homem que foi preso e morto em janeiro de 1992, antes da polícia investigar a família Gomes. “Dizem que ele morreu inocente. Ele sempre aparecia aqui em casa, pois era muito amigo do finado meu irmão. Era um senhor humilde, pedia comida e a minha família sempre dava. Era uma pessoa bacana, gente boa”, afirma.
Rotílio Francisco do Rosário era o nome do morador de rua detido meses antes do delegado Brivaldo Pinto Soares Filho chegar em Altamira. Ele aparece na memória dos familiares dos meninos como mais uma vítima das primeiras investigações do caso. Esse discurso, presente na declaração de Irene, é amparado por nomes como Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, e Amadeu (AABB), pai do Segundo Sobrevivente – seu sobrenome será ocultado para proteger a identidade do garoto.
Em entrevista ao podcast, Amadeu também fala sobre Rotílio. “Aquilo foi queima de arquivo. Todo mundo sabia. A Polícia Civil fez um trabalho péssimo naquela época”, comenta. Para ele, o então suspeito foi preso como forma de ocultar o envolvimento dos poderosos nos crimes. Ele teria sido torturado e morto como queima de arquivo. Os autos do processo não ajudam a elucidar o que aconteceu com Rotílio, apenas amparam a versão de que ele faleceu na delegacia. A causa da morte, bastante genérica, foi definida como “edema agudo de pulmão e insuficiência cardíaca”.
É esse contexto que Brivaldo encontra quando chega em Altamira alguns meses depois: famílias com uma profunda desconfiança da polícia e medo de dar depoimento, pois poderiam ser incriminadas ou desacreditadas por serem pobres. Mas o que surgiu na memória daqueles que Brivaldo conseguiu ouvir seria fundamental para o andamento do caso.
JUDIRLEY CHIPAIA
Um dos depoimentos reveladores foi o de Lúcia da Cunha Chipaia, irmã do menino indígena Judirley da Cunha Chipaia, datado de 20 de outubro de 1992. Ela estava junto com o garoto no dia do desaparecimento, em primeiro de janeiro do mesmo ano.
Naquele dia, Lúcia e a família foram até uma chácara localizada na área de Cupiúba para participar de uma confraternização. Após o almoço, por volta das 13h30, ela, Judirley e outros convidados saíram para tomar banho no igarapé da região. Perto das 15h, parte do grupo retornou para a festa, enquanto o menino permaneceu no local com os demais. Quinze minutos depois, o garoto também deixou o igarapé e seguiu em direção ao sítio, mas não apareceu mais.
Por volta das 17h, as pessoas perceberam a ausência de Judirley e passaram a procurá-lo pelos arredores da chácara. A família, no entanto, não se preocupou tanto pois imaginou que ele teria ido até outra fazenda ali perto, pertencente ao anfitrião da festa, junto com outra irmã, Lineide da Cunha Chipaia. Em certo momento, ela retornou sozinha para a chácara, o que reacendeu o alerta dos familiares. Eles voltaram para casa, mas Judirley também não estava lá. Por isso, decidiram retomar as buscas perto do igarapé e da casa onde a festa havia ocorrido. A procura seguiu até as 22h30, sem sucesso.
No dia seguinte, o pai do menino foi até a delegacia para registrar o desaparecimento do filho. Os policiais, então, fizeram buscas em hospitais da cidade e próximo do local onde ele foi visto pela última vez. A Polícia Militar também foi acionada e auxiliou nos trabalhos.
Já no terceiro dia, Lúcia Chipaia solicitou a ajuda do comandante do quartel do Exército, que se dispôs a colaborar se ela providenciasse transporte para os soldados, o que só foi possível por volta das 13h. Eles chegaram na ponte sobre o igarapé Cupiúba e lá se dividiram. O grupo que se dirigiu para o lado esquerdo conseguiu localizar o corpo do garoto em uma bifurcação da estrada onde ficava a fazenda da empresa Dispam.
Um cunhado de Lúcia, que acompanhava os soldados, informou que o cadáver já estava em estado de decomposição e apresentava visíveis sinais de violência. Algumas lesões, inclusive, pareciam ter sido produzidas por bala. O menino foi achado totalmente nu, com o calção que usava jogado ao lado do corpo.
Lúcia só viu o irmão mais tarde, no Hospital da Fundação Sesp, onde comprovou os ferimentos sofridos pela vítima: sinais de golpes de faca, uma profunda lesão no ânus e a retirada total do pênis e dos testículos.
Depois do sepultamento, familiares de Judirley foram chamados para depor. Na ocasião, outra irmã do garoto, Lizandra da Cunha Chipaia, contou à polícia ter visto uma caminhonete tipo Pampa ou Saveiro de cor vinho estacionada perto do igarapé às 13h do dia em que o menino desapareceu. Com essas informações, o delegado responsável pelo caso na época comentou com Lúcia que aquele veículo pertencia a José Amadeu Gomes, mas era mais utilizado pelo filho dele, Amailton Madeira Gomes.
Ainda de acordo com ela, outra situação envolvendo o mesmo automóvel chamou a atenção da família. Cerca de dois meses antes de Judirley desaparecer, outra irmã do garoto, Lucilene da Cunha Chipaia, ouviu do vizinho uma história estranha. Ele lhe contou que uma vez foi abordado por Amailton, que estava em uma caminhonete Pampa ou Saveiro vinho, sob o pretexto de perguntar a localização de uma praça no bairro Brasília. Ele entrou no automóvel e guiou o motorista até o local desejado, momento em que o rapaz teria tentado lhe apalpar. Por perceber que Amailton era homossexual, o tal vizinho pediu que ele parasse o carro, pois, caso contrário, desceria dali de qualquer jeito.
A partir dessas situações, o filho de Amadeu passou a ser considerado pelos familiares de Judirley como o principal suspeito do crime. A desconfiança aumentou ainda mais quando Lúcia ficou sabendo que o jovem havia viajado para Fortaleza poucos dias após a morte do menino, onde ficou por cerca de quatro meses.
Durante o depoimento que prestou a Brivaldo, ela ainda comentou que as primeiras investigações sobre a morte do irmão teriam resultado na identificação de alguns suspeitos. Ela tinha conhecimento, por exemplo, que Amailton Gomes e Luiz Kapiche eram nomes ventilados pela polícia. Lúcia relatou que Amailton não apareceu na delegacia para ser interrogado e quem foi no lugar dele teria sido o advogado da família, Arnaldo Gomes.
A irmã da vítima disse se lembrar que a polícia investigou a presença da caminhonete Pampa ou Saveiro nas imediações de um campo de futebol próximo ao igarapé Cupiúba. O empregado de uma chácara ali perto teria confirmado que o automóvel realmente estava estacionado no local no dia do crime contra Judirley, primeiro de janeiro, entre as 13h e 13h30.
Depoimento de Lúcia da Cunha Chipaia
AMAILTON GOMES
A partir do depoimento de Lúcia, o delegado Brivaldo encontrou um novo suspeito: o filho do poderoso Amadeu, Amailton Madeira Gomes, de 23 anos de idade.
Segundo Rubens Pena Júnior, pesquisador do caso dos emasculados, o que se sabe pelos autos é que Amailton não era bem visto na cidade. “O que eles querem deixar claro no processo é que ele era meio doidão, usuário de drogas. Inclusive, entre os documentos, existem fotos dele usando maconha. Eu acredito que ele era visto como um playboy, que tinha dinheiro e fazia o que queria. Eu conheço uma pessoa que conviveu com o Amailton, que é minha amiga. O que ela me diz sempre é que ele era alguém que gostava de beber, de fumar, de rock… Isso era estranho aos olhos da maioria da população, que não tinha acesso a essas coisas”, explica.
No inquérito original de Judirley, não há registros da ida do advogado Arnaldo Gomes, tio de Amailton, à delegacia. Talvez por isso, em 22 de outubro, dois dias após o depoimento de Lúcia, o delegado pediu para que Arnaldo fosse à delegacia prestar esclarecimentos. Por motivos que não constam nos autos, porém, isso nunca aconteceu.
Entre todos os elementos contra os Gomes, o caso de Amailton se destacava. De fato, a família tinha uma picape vinho, o que parecia corresponder com o relato de Lúcia Chipaia e Josivaldo Aranha da Silva. Esta última testemunha relatou ter sido ameaçada por três homens que estavam em um veículo como esse no dia e local em que o corpo de Judirley foi encontrado. Um deles teria falado para Josivaldo que o rapaz loiro do grupo, o aparente líder, tinha uma propriedade perto do posto de gasolina dos Gomes – estabelecimento bastante frequentado por Amailton, do qual inclusive era sócio junto com o pai.
Mas havia um detalhe que não se encaixava: o filho de Amadeu não era loiro. Apesar disso, os relatos em torno dele só aumentavam as suspeitas. Exemplo disso é o depoimento de uma testemunha chamada José Luiz Sobrinho, de 31 anos, dado ao delegado Brivaldo em 23 de outubro de 1992. Ele conta que se mudou para Altamira em 1974 e, pouco tempo depois, fez amizade com Amadeu e a esposa dele, Zaila Madeira Gomes, mãe de Amailton.
A testemunha diz ter ficado sabendo que em julho de 1991 Amailton saiu com um homem até uma fazenda no quilômetro 6 da Transamazônica. No meio do caminho, o jovem teria parado o veículo e começado a acariciar o órgão sexual do acompanhante, que estava no banco do carona. Segundo o relato, como o rapaz recusou o gesto, o filho de Amadeu sacou um revólver e obrigou o outro a abrir a sua calça, passando a praticar sexo oral com ele – chamado no depoimento de “felação”.
Aqui é necessário um esclarecimento. A sexualidade de Amailton é sempre muito comentada nesses primeiros depoimentos. Testemunhas diziam que ele tinha interesse por homens, mas que também já havia namorado mulheres no passado. Apesar de ser chamado de homossexual com frequência, não é possível afirmar com certeza qual a sua orientação. De qualquer forma, tudo indica que ele não era heterossexual.
Além disso, é notório que existe uma estigmatização: o homossexual maníaco que teria satisfação em castrar e abusar de garotos. Por se tratar de uma cidade no interior do Pará na década de 90, não é difícil supor que boa parte dos comentários vinha de boatos e de preconceito em torno de Amailton. Idealmente, é claro que a sua orientação sexual não deveria ter relação alguma com a investigação.
Por outro lado, são várias as histórias de que o jovem teria forçado homens a manter relações com ele. Um desses casos é relatado por Adijael Silva Feitosa, de 22 anos, ouvido em 13 de novembro de 1992. Na ocasião, ele contou que servia no 51º Batalhão de Infantaria da Selva, o 51 BIS, quando deu carona para um rapaz que dizia se chamar Marcos. Logo no início da viagem, esse indivíduo teria deitado no colo de Adijael e começado a praticar sexo oral nele. Em seguida, Marcos falou para Adijael não comentar nada com ninguém, caso contrário, o mataria. De acordo com a testemunha, outros soldados do quartel também relatavam terem passado pelo mesmo tipo de abuso e ameaça.
Após ter sido dispensado do Exército, Adijael passou a trabalhar como agente da Polícia Civil em Altamira. Certa vez, ele foi ao posto Gomes para abastecer um carro da delegacia. Lá, viu Marcos, mas não falou com ele. Ao perguntar para outras pessoas quem seria aquele homem, recebeu a resposta de que na verdade ele se chamava Amailton.
Depoimento de Adijael Silva Feitosa
Diante da estigmatização e do preconceito, não se pode descartar a possibilidade dos relatos de assédio e abuso serem falsos. Também não é possível afirmar com segurança o quanto a orientação sexual de Amailton foi determinante na forma como Brivaldo conduziu as investigações.
Em entrevista concedida à antropóloga Paula Lacerda, o delegado afirmou que tinha em sua equipe de policiais um agente gay. Nas palavras dele, a ideia era facilitar a entrada em lugares onde homossexuais se encontravam na cidade, o que poderia ser difícil para outros investigadores.
“Eu acho que a interpretação que o delegado Brivaldo faz sobre o Amailton está sentada sobre a homofobia. Então, a homossexualidade aparece associada às drogas e à perversão. Ele fala em várias passagens que uma prática do Amailton que mais lhe despertava o desejo sexual era a felação, e ele usa especificamente esse termo. A gente não tá dizendo que o Amailton é mais ou menos criminoso, mas sem dúvida a investigação foi orientada por isso”, comenta a pesquisadora.
Para ela, o fato de Brivaldo ter colocado um homem gay na equipe mostra a forma como ele enxergava os crimes que continham elementos sexuais. “Ele disse que chamou um investigador homossexual para que pudesse penetrar no submundo de Altamira. Com isso, a gente vê como talvez antes mesmo de ele ir para a cidade, ao montar essa equipe ‘diversa’, como se referiu, já imaginasse que crimes sexuais tinham ligação com um criminoso homossexual”.
Em diferentes momentos do processo, há ainda a conexão entre Amailton e Luiz Kapiche, que também seria homossexual. “Eu acredito que esse elemento, a homofobia, esteve sim bastante marcado na atuação e fala do delegado Brivaldo, assim como o machismo, o classimo, a xenofobia”, completa Paula Lacerda.
Apesar dessa leitura, a pesquisadora não acha que a homossexualidade tenha sido o fator mais relevante para o investigador ter ido atrás do filho de Amadeu. “Me parece que ele considerava como a confissão de culpa do Amailton justamente o fato de ele ter saído da cidade depois do crime contra um parente. Segundo o delegado, ele teria registrado a viagem por meio de contatos telefônicos com familiares, sendo que não tinha uma boa relação com eles. Para Brivaldo, isso era o que havia de principal contra o Amailton”.
AS SUSPEITAS AUMENTAM
A essa altura, o nome do jovem membro da família Gomes já circulava por toda a cidade como o possível autor dos assassinatos. Voltando ao depoimento de José Luiz Sobrinho, por exemplo, as histórias que ele teria ouvido sobre os supostos abusos de Amailton eram apenas o começo.
Um outro acontecimento narrado por ele foi ainda mais poderoso para alimentar a narrativa contra o suspeito. Um amigo de José, chamado Bené, lhe contou que em 2 de janeiro de 1992, dia seguinte ao desaparecimento de Judirley, Amailton chegou em casa com a camisa toda manchada de sangue. A empregada, ao ver aquela cena, tomou um susto, mas não teve coragem de perguntar o que tinha ocorrido. Afinal, ela já conhecia a fama dele e da família Gomes, que eram consideradas pessoas violentas em Altamira. A funcionária associou a peça de roupa suja ao sumiço do garoto indígena, que naquele momento era procurado por toda a cidade.
Alguns dias depois, Benedito Roberto de Oliveira, o Bené, foi chamado para ser ouvido. À polícia, ele explicou que quem lhe contou a história da empregada foi uma senhora que trabalhava em uma sorveteria da cidade. Ela também lhe confidenciou que o nome da tal funcionária da família Gomes era Fátima.
Depoimento de José Luiz Sobrinho
Depoimento de Benedito Roberto de Oliveira
Brivaldo tinha agora outra missão: encontrar Fátima. Essa seria mais uma pista importante para o andamento dos seus trabalhos. Antes que pudesse avançar nisso, no entanto, ele recebeu informações ainda mais chocantes de um delegado de Altamira chamado Roberto Carlos Macedo Lima. Esse investigador havia participado do início das investigações sobre Jaenes da Silva Pessoa. O seu depoimento também é de 23 de outubro de 1992.
Ele relatou que examinava o local onde o corpo do garoto havia sido encontrado quando notou a presença de um rapaz de nome Gilberto no local, junto com outros curiosos. Ele conhecia o jovem por vê-lo com frequência na cidade, já que a mãe dele era dona de uma estância localizada na frente da delegacia.
Após adotar todas as providências necessárias para a remoção do cadáver, o delegado voltou para o local de trabalho. Dez minutos depois, o tal Gilberto chegou, dizendo que precisava conversar com o investigador em particular. Já no gabinete de Roberto, o rapaz disse: “eu sei quem foi o autor desse crime”. Em seguida, passou a narrar que em 1988 morava na cidade de Belém junto com Amailton Gomes, que descreveu como “homossexual, viciado em tóxicos e propenso a ataques de sadismo”.
Segundo ele, os crimes contra os meninos emasculados só passaram a acontecer depois que o jovem membro da família Gomes se mudou para Altamira em definitivo, no fim de 1988. Além disso, reiterou que todas as vezes que acontecia um ataque aos garotos, Amailton deixava a cidade às pressas e permanecia por cerca de dois a três meses fora.
Em primeiro de outubro de 1992, quando Jaenes sumiu pela manhã, Gilberto encontrou Amailton por volta das 23h30. Na ocasião, o rapaz lhe avisou que viajaria para a Argentina porque “a barra estava pesada na cidade”. No dia seguinte, uma amiga em comum de ambos teria visto o jovem em uma motocicleta saindo de Altamira, em direção à Marabá.
No fim da conversa com o delegado, Gilberto sugeriu que a polícia analisasse a presença de vestígios de droga no local do crime, pois Amailton teria usado um entorpecente chamado “mesclado” antes de atacar a vítima. Surpreso com tantas informações importantes, Roberto saiu do escritório para chamar o escrivão e registrar tudo oficialmente, mas, quando retornou, o rapaz não estava mais lá.
Depoimento de Roberto Carlos Macedo Lima
A misteriosa testemunha era Gilberto Denis da Costa, um jovem de 22 anos, amigo de infância de Amailton. Ele morava em Belém e tinha ido à Altamira votar nas eleições, município onde cresceu com a família. Em depoimento a Brivaldo no dia 4 de novembro de 1992, ele corrigiu alguns detalhes passados pelo delegado Roberto, mas o teor do relato era o mesmo.
Para além dos comentários acerca da homossexualidade de Amailton, o que chamou a atenção no testemunho de Gilberto foi o seguinte: ele na verdade se encontrou com o filho dos Gomes em Altamira pouco antes do rapaz viajar de moto até o sul do Brasil e, em seguida, para a Argentina. Essa conversa teria ocorrido em 2 de outubro, dia seguinte ao desaparecimento de Jaenes. Na época, ele pediu para que o amigo não comentasse com ninguém sobre a viagem.
Gilberto contou ainda que Amailton tinha problemas com a família, principalmente com o pai, Amadeu. Além disso, seria uma pessoa violenta e que não gostava de crianças. Outro detalhe que comentou foi que achava estranho ele ter ido viajar logo após o sumiço de Jaenes. Afinal, o menino era parente de Amailton e todos estavam ajudando nas buscas, até mesmo desconhecidos.
Segundo Gilberto, o que alimentou as suspeitas contra o jovem foi também o fato de, momentos antes do crime, ele ter sido visto passando pelo bairro Brasília justamente na direção em que a vítima sumiu. Quem lhe contou isso teria sido um cunhado de Amadeu Gomes, que nunca foi chamado para depor. Por isso, essa história jamais foi confirmada.
Depoimento de Gilberto Denis da Costa
Quando Gilberto Denis prestou depoimento, Brivaldo já havia pedido um mandado de prisão para duas pessoas: Amailton Gomes e Josivaldo Aranha, o homem que afirmava ter sido ameaçado por três pessoas no dia e local onde o corpo de Judirley foi achado.
Uma questão, porém, ainda incomodava o delegado: todos os indícios apontavam para Amailton, mas ele não era loiro, como apontavam os relatos de Josivaldo. Por isso, o investigador resolveu averiguar melhor essa história. Em 23 de outubro de 1992, um homem de nome Estanislau Juscelino Nunes Leão foi ouvido na delegacia. Ele conhecia Josivaldo desde a infância, já que o jovem havia sido criado por sua mãe desde os dois anos de idade. Estranhamente, no entanto, ele disse à polícia que o rapaz jamais havia lhe contado sobre a ameaça que teria sofrido.
Depoimento de Estanislau Juscelino Nunes Leão
Por isso, Brivaldo achou que Josivaldo estava mentindo e acabou por pedir a sua prisão temporária. Em entrevista para a tese de Paula Lacerda, o delegado afirmou que tudo mudou quando decidiu fazer um passeio de lancha no Xingu em um sábado, junto com várias pessoas. De repente, uma das convidadas se aproximou e começou a puxar papo, pois o reconheceu de uma entrevista na televisão: “o senhor está atrás daquele doido de cabelo loiro, não é?”, perguntou. O investigador tentou desconversar, falou que não sabia de nada. A moça, porém, lhe disse algo surpreendente: ela soube que Amailton tinha pintado o cabelo em janeiro de 1992. Foi aí que Brivaldo voltou para a delegacia onde Josivaldo estava preso e comentou: “você realmente não estava mentindo”.
Nada disso consta no relatório do delegado sobre as investigações. Boa parte é apenas suposição. Se isso de fato for verdade, é provável que a mulher que passou a informação para Brivaldo não aceitou prestar depoimento. Provavelmente, teve medo de ter o nome registrado. Ou seja, toda a perseguição pelo suspeito loiro não existe oficialmente no processo, mas foi determinante para o andamento do caso.
Convencido, o investigador pediu a prisão preventiva de Amailton no dia 26 de outubro de 1992. Nessa ocasião, o seu pai, o fazendeiro Amadeu Gomes, foi ouvido pelo delegado. Acompanhado do irmão, o respeitado advogado Arnaldo Gomes, confirmou alguns fatos sobre o filho: que ele dirigia uma picape Saveiro da família, de cor vinho, e que estava com o veículo no início de janeiro daquele ano.
Duas coisas se destacaram durante o relato do fazendeiro: primeiro, ao ser perguntado se poderia falar algo sobre o perfil psicológico do filho, Amadeu respondeu que, embora convivesse com ele há 23 anos, o considerava um estranho. Em segundo lugar, afirmou que Amailton era “dado a aventuras”, pois gostava de viajar de moto sem ter dia e hora para chegar ao destino. Questionado sobre a data que ele saiu da cidade naquele ano, Amadeu falou em 29 ou 30 de setembro – o que seria antes do desaparecimento de Jaenes e, como consequência, desmontaria a linha do tempo montada pelo investigador.
Mesmo assim, Brivaldo não teve dúvidas: na melhor das hipóteses, Amadeu teria se confundido. Na pior, estaria mentindo. Por esse motivo, pediu a prisão preventiva de Amailton. As testemunhas principais citadas no documento eram José Luiz Sobrinho e Benedito de Oliveira, que contaram a história da empregada Fátima e da camisa suja de sangue. Além deles, Gilberto Denis Costa também havia sido mencionado, devido ao relato que fez ao delegado Roberto Carlos Macedo Lima.
No dia 27 de outubro, a juíza Vera Araújo de Souza, da Comarca de Altamira, expediu o mandado. Amailton, porém, não estava na cidade. Segundo o próprio Amadeu, quando saiu, o filho não tinha destino certo, já que se tratava de uma viagem com caráter de aventura, sem previsão de retorno. O fazendeiro afirmou que recebeu o primeiro telefonema do rapaz uns dias antes, quando ele estava em Goiânia, hospedado na casa de um amigo. Mais tarde, conversou por ligação com o filho enquanto ele se encontrava em Santa Catarina e, posteriormente, em Santa Vitória dos Palmares, no Rio Grande do Sul – fronteira com o Uruguai. De acordo com Amadeu, essas conversas eram mantidas apenas para que ele pudesse enviar dinheiro a Amailton.
Depoimento de José Amadeu Gomes
Dias se passaram. Há nos autos uma intimação datada de 10 de novembro para que o jovem membro da família Gomes comparecesse na delegacia para prestar depoimento no dia seguinte. No verso, lê-se que o suspeito havia saído de casa há cerca de um mês para lugar incerto e não havia sido encontrado. Declarações feitas posteriormente dão conta de que, por telefone, Amadeu pedia que o filho retornasse à Altamira e esclarecesse tudo.
Eis então que, no dia 13 de novembro, mais uma criança desapareceu. Seu nome era Klebson Ferreira Caldas, de 12 anos. Esse novo caso mudaria ainda mais os rumos das investigações e reforçariam alguns dos temores mais profundos do delegado Brivaldo.